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Por Giovanna Barreto, Henrique Rezende e Rafaela Ferreira - graduandos em Relações Internacionais pela PUC-SP e membros do Programa de Educação Tutorial (PET-RI)
A questão da quebra das patentes da vacina de Covid-19 ganhou grande repercussão na mídia após o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, em um posicionamento histórico, se mostrar a favor da decisão, no dia 5 de maio. Tal medida é vista como uma forma de reduzir a desigualdade na aplicação de doses da vacina do COVID-19 no mundo.
Mas afinal, o que significa a quebra na patente das vacinas de COVID?
As patentes são instrumentos pelos quais a propriedade intelectual é protegida, garantindo a exclusividade de fabricação por uma única empresa, e consequentemente, o monopólio comercial. Dessa forma, na indústria farmacêutica, quando um medicamento ou vacina é desenvolvido, a empresa os patenteia para garantir que ninguém os produza sem autorização. Esse mecanismo permite que as companhias controlem os preços dos produtos e maximizem seus lucros, já que não há concorrência.
A quebra da patente da vacina de COVID consiste na transferência de tecnologia necessária para a fabricação da vacina feita por países desenvolvidos para que outras nações possam produzi-la. Dessa forma, as empresas responsáveis pelo desenvolvimento da vacina perderiam seu monopólio. Atualmente, as tecnologias das vacinas da Pfizer, Moderna, AstraZeneca e Johnson & Johnson são requeridas para entrarem temporariamente em domínio público. Segundo o tratado internacional de propriedade intelectual – TRIPs, o licenciamento temporário de patentes pode ser liberado em casos de emergência internacional ou de interesse público, sendo o caso da pandemia.
A OMC (Organização Mundial do Comércio) é o órgão que está liderando as negociações da flexibilização de patentes. Essa questão é de extremo interesse dos países da organização, visto que é o fórum internacional onde países de baixa e média renda costumam ter mais espaço. Isso também acontece porque a OMC administra os acordos de direito de propriedade intelectual relacionados ao comércio. A organização ainda desenvolveu um projeto que visa acelerar a fabricação de vacinas, chamado C-TAP (Acesso Conjunto a Tecnologias contra a Covid-19), cujo objetivo é criar um banco de compartilhamento voluntário de tecnologia, dados e propriedade intelectual. A iniciativa já conta com 40 signatários.
Esse assunto tem ganhado cada vez mais força devido à explícita desigualdade presente nos índices de vacinação ao redor do globo, sendo que alguns já chamam a atual situação de "Apartheid da Vacina" . Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), 75% das doses foram aplicadas em apenas 10 países desenvolvidos. Também estima-se que em 130 países que concentram mais de 2,5 bilhões de pessoas, quase nenhuma dose foi aplicada. Nesse sentido, a quebra de patentes funcionaria como um meio de combater o imenso abismo entre as taxas de vacinação no mundo.
Porém, especialistas afirmam que apenas a quebra de patentes não seria suficiente para reduzir a desigualdade. Isso porque, a maioria dos países não possui outros elementos indispensáveis para fabricação das doses, tais como insumos e laboratórios preparados. Para se produzir doses da Pfizer, por exemplo, são necessários 280 ingredientes que vêm de 19 países diferentes. Além disso, cientistas defendem que técnicas e “segredos industriais” também são essenciais para fabricar vacinas, e que sem esses fatores, não há como garantir a eficácia da vacina produzida fora dos laboratórios das empresas.
Alguns cálculos mostram que, economicamente, a quebra de patentes não é tão benéfica para os países mais pobres, dado que teriam que investir muito para criar condições suficientes para produzir doses localmente. Também se deve levar em consideração que o desenvolvimento de laboratórios e mecanismos necessários para produção levaria muito tempo. Por isso, muitos defendem que faz mais sentido tentar negociar a venda de vacinas a preços mais justos.
Em contrapartida, argumenta-se que países de média renda com infraestrutura de laboratórios, tais como Índia, Paquistão, África do Sul e Brasil possuem condições para fabricação de vacinas, caso as patentes sejam quebradas. Se for considerado o tamanho das populações dessas nações, um número grande de pessoas pode ser vacinada em menos tempo do que previsto atualmente.
Soma-se a isso o fato de que os cientistas ainda não sabem ao certo quanto tempo a imunidade da vacina de COVID dura, sendo que, devido ao contínuo surgimento de novas variantes, é provável que seja necessário que doses sejam aplicadas com certa frequência, como é o caso da vacina da gripe, a qual é aplicada anualmente. Nesse cenário, a quebra de patentes seria importante a médio e longo prazo.
Uma solução alternativa à quebra de patentes é a de formular acordos bilaterais, como o Brasil faz na parceria Fundação Oswaldo Cruz-Fiocruz e AstraZeneca-Oxford. Tais acordos estabelecem a compra de tecnologia e insumos para produção de doses. Entretanto, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, desencorajou tal prática, visto que ela contribui para o aumento de preços e dificulta ainda mais o acesso aos países pobres. Ele ainda disse que é preciso priorizar o Covax, fundo da OMC para distribuição de vacina aos países mais pobres, que já conta com o financiamento de pelo menos 75 nações.
Nova Posição dos Estados Unidos
Foto: ANDREW CABALLERO-REYNOLDS / AFP/ Brasil de Fato
O presidente norte-americano, Joe Biden, fez uma mudança histórica na posição dos Estados Unidos em relação ao tópico controverso sobre a quebra de patentes, no último dia 5 de maio. Através de um comunicado da Katherine Tai, embaixadora e representante da USTR (Escritório de Representação Comercial dos Estados Unidos, em português), se tem o apoio sobre a quebra de patentes das vacinas contra a COVID-19, dentro das negociações da Organização Mundial do Comércio (OMC).
“A administração acredita fortemente na proteção das propriedades intelectuais, mas com vistas a encerrar essa pandemia, apoia a anulação dessas proteções para as vacinas contra a covid-19” comunicado de 5 de maio de 2021 (tradução nossa).
A mudança histórica se dá de forma singular, uma vez que a atual pandemia deixou aproximadamente 3,5 milhões de mortos e 168 milhões de casos ao redor do mundo. Dessa forma, a administração Biden vê os EUA com a responsabilidade de auxiliar os países que mais estão sendo afetados, uma vez que os Estados Unidos já se encontram avançados na campanha de vacinação e tem os recursos para tal. Além disso, existe a preocupação do surgimento de novas variantes cada vez mais preocupantes. Portanto, acelerar a vacinação pelo mundo é de extrema importância.
Dessa forma, a quebra de patente é visada para acelerar a produção de doses da vacina nos países em desenvolvimento, seguindo ao posicionamento tomado pela Índia e África do Sul na OMC. Esse apoio estadunidense é de extrema importância, pois pode influenciar outros países a votarem a favor de uma possível quebra de patentes das vacinas dentro da organização. Porém, Katherine ainda ressalta, no comunicado, que as “negociações vão levar tempo, devido à natureza de consenso [na tomada de decisões] da instituição e complexidade das questões envolvidas” (tradução nossa)
A dificuldade maior que se encontra são dos países desenvolvidos e que financiaram o desenvolvimento dessas vacinas. Um dos argumentos que usam é pela existência de regras que permitem países aplicarem para uma Licença Compulsória, que permitiria burlar as regras das patentes em momentos de emergência. Porém, é necessário ressaltar que o processo para realizar tal é extremamente lento e complexo, além de que cada requerimento só abarca um produto. Uma consequência de tal é o custo político e que pode, inclusive, levar a sanções (THAMBISETTY et al, 2021, p. 31-38). Atualmente a Bolívia entrou com um pedido junto à OMC para que possam produzir a vacina da Johnson & Johnson.
A Diretora Geral da OMC, Ngozi Okonjo-Iweala, em entrevista à Reuters, disse que os “proponentes [da quebra de patente das vacinas] estão preparando uma revisão da proposta” e ainda “insiste que seja colocado na mesa assim que possível, para que as negociações em cima do texto se iniciem” (tradução nossa). Ela demonstra grande preocupação com a desigualdade do acesso à vacina, que acaba por agravar a situação da pandemia. Assim espera que, com as negociações, “nós possamos concordar com um texto que dê acesso e flexibilidade para os países em desenvolvimento, ao tempo que protege as pesquisas e inovações” (tradução nossa)
Ngozi Okonjo-Iweala. Fonte: WTO
No Brasil, em abril, antes da mudança histórica de posição dos Estados Unidos, um projeto para a quebra de patentes de vacinas e medicamentos relacionados ao combate da COVID-19 foi aprovado no Senado. Depois de muitas críticas do governo federal e do setor privado, o texto foi alterado mas continua a ser contestado por dar margem ao descumprimento de tratados internacionais, além de a continuação do projeto arriscar o recebimento de milhões de doses de vacinas a serem recebidas nos próximos meses.
O país se diz satisfeito com a disposição dos Estados Unidos para negociar na Organização Mundial do Comércio (OMC) e intensificar esforços com o setor privado para ampliar a produção e distribuição de vacinas e insumos no mundo todo. Declararam, ainda, que irão consultar seus parceiros internacionais acerca do assunto, especialmente os Estados Unidos, para estudar a nova postura do país.
Apesar disso, ainda acredita que a quebra de patentes não deve acontecer, seguindo fiel ao posicionamento adotado em apoio ao antigo presidente Trump.
No dia 5 de maio, em reunião na OMC, a delegação do Itamaraty, apesar de manifestar importância dada à transferência de tecnologia, afirmou que é preciso seguir um procedimento pragmático baseado na cooperação com empresas, reiterando sua posição contrária à quebra de patentes.
O ministro das Relações Exteriores, Carlos Alberto de Franco França, afirmou no dia seguinte que, ainda que não aprovem, não descartam hipótese. Segundo ele, a quebra de patentes irá favorecer países já detentores de tecnologia e pode afastar o Brasil dos produtores de vacina.
Dimas Covas, presidente do Instituto Butantan, também é contra a quebra de patentes. Segundo ele, ela pode ocasionar em uma represália de multinacionais, que podem interromper o fornecimento de outros medicamentos importantes. A presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, também discorda, sinalizando para a necessidade de focar na produção local de insumos para expandir a vacinação.
Por outro lado, o ex-presidente Lula, que já tinha anteriormente defendido a ideia de uma conferência internacional para discutir a quebra de patentes, aplaudiu a decisão de Joe Biden.
Alinhado ao posicionamento brasileiro, a iniciativa privada não apoia a quebra de patentes. A categoria farmacêutica tem tentado, usando de lobbistas, sustentar que a solução seria acordos voluntários de transferência de tecnologia. Segundo a Federação Internacional da Indústria Farmacêutica, a decisão de Biden é o caminho mais fácil e errado para um complexo problema que não irá necessariamente ampliar a produção. As multinacionais entendem que o ato acabaria com iniciativas voltadas para a inovação.
Posto isto, entende-se que, num primeiro momento, apenas a quebra de patentes de vacinas de COVID não reduzirá substancialmente a desigualdade da vacinação no mundo. Tal medida pode ser útil para nações com infraestrutura de laboratórios, como Índia e África do Sul. Entretanto, para os países mais vulneráveis do cenário internacional, a produção de doses continuará inalcançável. Por isso, é necessário pensar em outras maneiras de se obter vacinação em massa, seja por doações, fundos de financiamento ou negociação com preços mais justos. Essa desigualdade absurda da aplicação de doses apenas reflete a assimetria socioeconômica do sistema internacional, derivada de processos históricos de exploração e colonização. Dessa forma, não se trata de um problema com uma solução específica, mas sim uma estrutura capitalista de poder que produz pobreza e exclusão em todos os âmbitos sociais, não apenas na questão das vacinas. Nesse sentido, a vacina pode ser a solução da pandemia para os países desenvolvidos, mas, por enquanto, para os mais pobres, ainda não é.
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