Por Renato Campos
Nos últimos anos o Brasil ampliou sua posição de protagonismo nas discussões acerca da mobilidade forçada de pessoas, na medida em que passou a receber um número cada vez mais significativo de solicitações de refúgio em razão do agravamento da crise econômica e humanitária que assola a Venezuela. A intensificação desses fluxos migratórios é uma realidade incontestável no mundo contemporâneo, sendo o êxodo de venezuelanos a maior migração forçada de pessoas na história recente da América Latina.
Há que se ressaltar que infelizmente o trânsito de pessoas em situações de necessidade extrema por vezes pode estar associado à ascensão de discursos inflamados, sendo estes muitas vezes sustentados em dados mal compreendidos por grande parte da população, bem como por uma interpretação restritiva de conceitos caros às Relações Internacionais como soberania, cidadania e a centralidade do Estado no sistema internacional moderno.
Tratando a questão de maneira bastante superficial, há que se reconhecer que o fenômeno da migração forçada não é em nada recente na história da humanidade, destacando-se como um dos resultados da construção do sistema estatal moderno. Interessante, nesse passo, o posicionamento adotado por Alexander Betts (2016), que chega a afirmar que o sistema estatal e os refugiados são dois lados da mesma moeda, sendo estes parte integral da sociedade internacional e símbolo da problemática relação existente entre as figuras do Estado, do cidadão e do território construída a partir da invenção do sistema estatal contemporâneo.
Vale perceber, ainda, que a proteção internacional do refugiado se limita em grande parte à esfera formal do direito, na medida em que a materialidade normativa acaba por ocorrer nos planos nacional e transnacional, sedimentando aos refugiados, recorrentemente relacionados com insegurança e apreensão, um cenário em que seus direitos mais básicos sejam habitualmente negligenciados.
Dessa forma, considerando que a esfera de atuação no âmbito doméstico tende a impactar de forma mais direta o cotidiano dos migrantes e sua integração no país de refúgio, destaca-se a pertinência de uma maior compreensão do impacto que a chegada em massa de venezuelanos teve no Brasil até então.
O contexto brasileiro – a acolhida
O real entendimento dos efeitos da entrada de um número expressivo de refugiados no país de destino não é em nada uma tarefa simples e exatamente por se tratar de um fenômeno complexo, dificilmente gerará efeitos exclusivamente positivos ou negativos, sendo pertinente uma análise mais aprofundada de dados qualitativos que possam sustentar cada caso concreto, no sentido de enriquecer a discussão e melhor fundamentar a formulação de eventuais políticas públicas eficientes.
O território brasileiro mais afetado com a chegada massiva de migrantes advindos da Venezuela foi o Estado de Roraima, unidade da federação fronteiriça ao país bolivariano e que despontou como a principal porta de entrada dos refugiados no país nos últimos anos, sobretudo por meio do município de Pacaraima.
Merece destaque o fato de que pouco há que se questionar a categorização dos recém chegados como refugiados, já que estes se veem obrigados a deixar seu país de origem ante a completa impossibilidade de manutenção das condições mais básicas para uma sobrevivência digna. Inclusive, em junho de 2019 o Comitê Nacional para Refugiados (CONARE) reconheceu formalmente a situação de grave e generalizada violação de direitos humanos na Venezuela, facilitando o processo para a regulamentação dos refugiados venezuelanos no país.
Desde 2013 até dezembro de 2019, mais 260 mil venezuelanos solicitaram refúgio ou residência no Brasil, sendo que, segundo dados divulgados pela ACNUR e pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública do Brasil, somente em 2018 foram mais de 60.000 solicitações, tendo o Estado de Roraima recebido 63% delas. Em tempos de pandemia como os que vivemos na atualidade, já se mostra a inevitabilidade da calamidade econômica mundial que se espreita, sendo improvável outro resultado que não um agravamento do quadro venezuelano e uma intensificação do fluxo migratório.
Imperativo, portanto, compreender o real impacto econômico da inserção dos estrangeiros na sociedade brasileira e como tornar essa integração a mais benéfica para todo o conjunto de atores envolvidos. Para isso, há que se analisar o caso roraimense e destacar de maneira ampla e com base em dados econômicos as possibilidades geradas pela chegada destes migrantes capazes de fomentar contundentes alterações na dinâmica econômica nacional.
Sobre a economia roraimense
O Estado de Roraima está localizado em um dos limites territoriais do Brasil e acaba sendo marcado por sua baixa integração em termos econômicos e de infraestrutura com o restante do país. Esta unidade da Federação destaca-se como a detentora do menor PIB absoluto nacional, caracterizando-se, também, pela baixa diversificação de sua economia local e pela grande dependência da mesma nos gastos e investimentos do setor público, quadro este em absoluto uma exclusividade na realidade brasileira.
Sendo este o local onde ocorre a maior parte da entrada de venezuelanos no país, ganha força o argumento que sustenta a extrema limitação na capacidade de absorção da economia roraimense, quando se observa a necessidade de integração do montante de imigrantes que já se encontram sob a soberania brasileira. Tais características também tem o condão de, a partir de uma análise superficial, fomentar o medo da população local e servir de apoio à formação de um discurso ideologicamente polarizado de cunho oportunistamente nacionalista.
De toda forma, ainda que considerada a incapacidade inerente ao estado de Roraima para lidar com a crise isoladamente, é possível aferir a partir de um relatório elaborado por pesquisadores da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (FGV DAPP), do Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra) e da Universidade Federal de Roraima (UFRR), com financiamento da Agência da ONU para Refugiados (Acnur) e da Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU), intitulado “A economia de Roraima e o fluxo venezuelano – Evidências e subsídios para políticas públicas”, que a entrada dos migrantes venezuelanos coincide com determinadas transformações benéficas na economia local.
Foi possível observar o atingimento de uma série de indicadores econômicos positivos e, por vezes, acima da média nacional. Parte da explicação pode ser dada pelo fato de que a grande maioria da população migrante encontra-se em idade economicamente ativa, representando um impacto contundente na pirâmide etária de Roraima e uma relação provável com a possibilidade de inserção no mercado de trabalho. Nesse sentido, dentre os que chegaram ao Brasil no primeiro trimestre de 2019, a ampla maioria (71%) encontra-se entre a faixa etária dos 25 e 49 anos, é do sexo masculino (58%) e possui nível de escolaridade secundária (51%) e superior (26%), segundo dados da Organização Internacional para as Migrações (OIM).
Outro importante indicador foi aumento no produto interno bruto roraimense entre os anos de 2016 e 2017, momento em que a entrada massiva de venezuelanos na região já era uma realidade. Em tal ocasião, a economia de Roraima sofreu um aumento de 2,3% de seu PIB, na medida em que a média dos demais estados da Federação foi de apenas 1,4%. Não menos relevante está a aferição da diversificação econômica no Estado, tendo este sido acrescido na ordem de 8% entre os anos de 2017 e 2018, sendo importante notar que tal fenômeno também não foi observado a nível nacional ou sequer regional.
Ademais, com a dinamização da atividade econômica já mencionada, o governo de Roraima pôde contar com um aumento expressivo na arrecadação do imposto sobre a circulação de mercadorias e serviços (ICMS), tendo esta sido acrescida em 25% entre o final de 2018 e o primeiro semestre de 2019. Extremamente relevante esse aumento na medida em que a arrecadação do ICMS desponta como uma das principais fontes de receita estadual, possibilitando uma maior carga de investimento público no Estado. Da mesma forma que os demais índices outrora mencionados, não foi possível notar uma melhoria similar no que se refere a essa modalidade de arrecadação tributária nos outros Estados brasileiros durante o mesmo período.
Parte da justificativa de tamanha melhora em diversos índices econômicos também pode ser explicada pelo que se passou a identificar como a construção de uma economia humanitária na região, fomentada pelos grandes aportes financeiros realizados pelo Governo Federal brasileiro, assim como pelo estabelecimento de bases de atuação de diversas instituições internacionais e nacionais, além de organizações componentes da sociedade civil. Vale perceber que essa economia humanitária tem a capacidade de impactar positivamente porque, além de restringir parte dos custos a serem desembolsados pelo governo em áreas estratégicas, é composta também pela contratação de serviços, produtos e funcionários, dinamizando ainda mais a economia local.
Integração e interiorização – um esforço conjunto.
Doravante demonstrada a melhora de determinados índices econômicos coincidentes com o aumento do fluxo de entrada dos migrantes venezuelanos no Estado de Roraima, não há que se minimizar as dificuldades potenciais da manutenção de tamanho grupo de pessoas em um Estado sem estrutura proporcionalmente volumosa.
Ainda que no curto período analisado não tenha sido possível observar um colapso dos sistemas públicos de saúde ou do acesso à rede estadual de educação, nem tampouco uma redução significativa dos salários, foi possível perceber um aumento no número de desempregados. Dessa forma, parece ser consenso entre os que se debruçam sobre o tema, a necessidade de interiorizar parte do recém chegados, bem como facilitar o seu processo de efetiva integração à sociedade brasileira.
A capacitação profissional, o ensino da língua oficial nacional, a regulamentação de procedimentos de validação de diplomas, e a emissão de documentos oficiais básicos como a carteira de trabalho, são exemplos categóricos de medidas a serem tomadas para possibilitar o processo de integração dos refugiados e minimizar as chances de impactos negativos recaírem sobre o país. Sobre a inserção no mercado de trabalho, diversos avanços já têm sido feitos, sendo possível observar que a dinâmica de admissões de venezuelanos no mercado formal de trabalho brasileiro foi ampliada ao longo do período de 2016 a outubro de 2019. Imprescindível também ressaltar que o saldo de contratações destes funcionários restou positivo no tocante aos desligamentos, demonstrando a habilidade de manutenção da força laboral no mercado de trabalho e, consequentemente, uma diminuição da capacidade ociosa do país.
Parte fundamental da iniciativa do Governo Federal para lidar com a questão migratória no país foi a Operação Acolhida, capitaneada pelo Exército brasileiro e que visa a recepção e proteção dos refugiados venezuelanos, bem como pretende fomentar o procedimento de interiorização dos mesmos. Já foram destinados mais de 500 milhões de reais para o projeto desde sua criação em 2018, tendo desde então beneficiado cerca de 27 mil venezuelanos refugiados no país.
Acontece que a economia brasileira encontra-se em posição delicada e, assim sendo, ainda que o país tenha se comprometido internacionalmente com o respeito aos direitos humanos e tenha se alinhado legislativamente às recomendações dos principais organismos internacionais que se dedicam à garantia dos direitos dos refugiados, por meio da promulgação do novo marco regulatório legal sobre o tema das migrações, a capacidade de atuação do Governo Federal sozinho é em tudo limitada.
Nesse sentido, o vácuo deixado pela impossibilidade de atuação exclusiva do Poder Público brasileiro há de ser preenchido por outras organizações, afastando os fantasmas dos prejuízos pretensamente inerentes à chegada de estrangeiros em situações de miséria no país. Consequentemente, é possível perceber a importância ímpar que a sociedade civil desempenha tanto no que se refere à exigência de elaboração de políticas públicas, quanto no apoio oferecido aos refugiados, buscando garantir o acesso a direitos e serviços.
No Brasil, tem sido possível observar uma série de iniciativas capitaneadas por organizações da sociedade civil como, por exemplo, os projetos “Cives”, implementado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Roraima, “Atuação em rede”, de múltipla iniciativa e o realizado pela Cáritas brasileira, em Manaus. Nas palavras do padre Orlando Gonçalves Barbosa, membro ativo desta última iniciativa: “Nossos eixos de atenção são acolhimento institucional, transferência de renda e atendimento diário. Prestamos informações sobre emissão de documentos, serviços públicos; damos apoio ao processo de integração na sociedade; oferecemos cursos profissionalizantes e de língua portuguesa; entre outros serviços”.
Ante todo o exposto nota-se que a transposição das mazelas impostas pelo processo de migração forçada depende de um esforço conjunto dos mais diversos âmbitos da sociedade acolhedora. Além dos necessários esforços do Poder Público, não se pode ignorar o crucial papel que a sociedade civil organizada, os organismos internacionais, as universidades e diversas outras instituições têm desempenhado na acolhida, integração e interiorização dos refugiados, sendo peças fundamentais para os inúmeros ganhos que a chegada dos estrangeiros pode trazer a um país como o Brasil.
No mais, o aprofundamento teórico e o questionamento de conceitos tidos como pressupostos inflexíveis parecem ser a resposta para pavimentar um caminho mais alinhado com as normas internacionais e com uma atuação mais moral do que a estabelecida de maneira bastante limitada, diga-se de passagem, pela rigidez das fronteiras nacionais e pela noção de cidadania, conceitos que inegavelmente tendem mais a excluir do que propriamente proteger os indivíduos.
A superação conjunta de tal crise tão característica à esse século já definido como a era das migrações pelos teóricos Stephen Castles, Hein de Haas e Mark J. Miller, pode estar relacionada com o enfraquecimento da centralidade do Estado moderno e a superação da dicotomia entre o que é doméstico e o que é internacional, bem como com o alinhamento das diferentes esferas que compõem a sociedade moderna.
Bibliografia:
DIRETORIA DE ANÁLISE DE POLÍTICAS PÚBLICAS DA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS (FGV DAPP); OBSERVATÓRIO DAS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS (OBMigra); UNIVERSIDADE FEDERAL DE RORAIMA (UFRR). A economia de Roraima e o fluxo venezuelano Evidências e subsídios para políticas públicas. Rio de Janeiro. 2020. Disponível em: < https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/29097 >. Acesso em 12 de junho de 2020.
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