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A participação do setor privado nas catástrofes climáticas e o caso de Porto Alegre

Por Gabriela Wuiny, graduanda em Relações Internacionais pela PUC-SP e bolsista pelo PETRI

Fonte: UN News


Entre abril e maio de 2024, o estado do Rio Grande do Sul foi palco de uma das maiores tragédias ambientais e populacionais já registradas nas últimas décadas. Ao todo foram 478 municípios afetados, 806 pessoas feridas, 31 desaparecimentos e 182 mortes, a tragédia afetou a vida cotidiana de muitas pessoas do estado, inclusive na capital Porto Alegre (Defesa Civil, 2024). Em um cenário tão devastador como esse, a ação estatal se torna fundamental para a reconstrução dos espaços antes ocupados pela população, porém é comum que em casos emergenciais ou de despreparo haja contratação de empresas privadas especializadas em situações emergenciais como desastres climáticos e até mesmo empresas de consultoria, como veremos mais tarde. Contudo, o histórico de envolvimento do setor privado em casos como esse escancaram as diferenças de interesses e prioridades, provando-se ineficientes e excludentes, exacerbando as diferenças socioeconômicas já existentes.


Naomi Klein em “A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre”, traz a tona o pensamento construído por Milton Friedman, que enxergava as crises como oportunidade de transformar reformas radicais em políticas públicas permanentes, já que o choque que a sociedade enfrentava serviria como amortecedor a outros choques premeditados. Klein faz uma análise de como esse pensamento teria contribuído para o estabelecimento de uma nova forma exploratória sobre os civis em meio a cenários de crise econômica, política e especialmente climática sob a justificativa de proteção da liberdade e do mercado econômico (Klein, 2017).


A autora realiza uma análise de como isso ocorreu após os danos causados pelo Furacão Katrina, em Nova Orleans, nos Estados Unidos Um exemplo disso foi a venda do sistema educacional ao setor privado e a demissão de um grande número de funcionários da educação, além da contratação de empresas responsáveis pela reconstrução e limpeza da cidade com origem no âmbito privado. Desse modo, medidas como essa teriam resultado no desmantelamento do papel do Estado e aumento da desigualdade social, além da exclusão e deslocamento da população mais pobre, em sua maioria negra. Nesse sentido, é possível discutir o uso do termo “reconstrução”, que passa a possuir dois sentidos, um para a população vítima de desastres naturais, que enxerga o conceito como uma chance de resgatar o espaço que antes existia ali; e outro para o setor privado, que utiliza a “reconstrução” como pretexto para construir novas formas de lucrar, seja criando áreas residenciais de alto padrão ou setores turísticos (Klein, 2017).


O fenômeno citado anteriormente constituiria o capitalismo de desastre, onde a crise tem o papel de abrir os mercados para gerar picos de crescimento, assim o desastre e reconstrução se tornam o próprio mercado. No caso de Porto Alegre, podemos citar a mais recente contratação da prefeitura na tarefa de reconstrução da cidade, a mega consultoria Alvarez & Marsal (A&M), com histórico de ação em quatro continentes e conhecida por atuar na consultoria do desastre do Furacão Katrina, no caso judicial da Americanas e mais recente se envolveu na privatização da Companhia Riograndense de Saneamento e sua compra pela Aegea Saneamento. Desde o anúncio de sua contratação, a empresa vem sofrendo críticas devido ao seu histórico de desregulação de políticas e privatização de serviços públicos, sendo incluída no fenômeno de “capitalismo de desastre” pelo sociólogo e professor do Centro de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), Victor Marchezini (Moncau, 2024).


A decisão feita pelo  atual prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, previu que os 60 primeiros dias trabalhados seriam gratuitos e que posteriormente, caso fosse necessário, novos cálculos de custos do contrato seriam feitos. Essa instabilidade acerca dos serviços oferecidos pela empresa, transmitem desconfiança sobre responsabilidades, transparência e interesses ocultos, sobretudo levando em conta a participação da empresa na privatização da Corsan em um processo exageradamente sigiloso e que não contou com a licitação obrigatória em processos de consultoria para privatização (Araujo, 2024). Além disso, há debates relacionados ao incentivo da privatização do Departamento Municipal de Água e Esgotos (DMAE), assunto que gerou polêmica desde o ano de 2023 e que pode ganhar força outra vez com o apoio do setor privado e a reeleição de Sebastião Melo nas eleições municipais de 2024, sendo que a privatização do setor foi uma de suas promessas de campanha.


Em relação a falhas técnicas, após as enchentes históricas, identificou-se uma falha do sistema de bombeamento e distribuição de água, tarefa de responsabilidade de agentes de saneamento do estado do Rio Grande do Sul, em razão disso foi necessário o auxílio nesses aspectos de agências fora do estado, como a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa), Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (Casan) e a Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar) (Mengue, 2024). De modo geral, sabe-se que o sistema anti cheias de Porto Alegre não foi capaz de suportar a elevação dos níveis da água em razão das intensas chuvas.


O sistema anti cheias conta com 68 km de diques, comportas, muros e casas de bombas, foi criado pelo já extinto Departamento Nacional de Obras de Saneamento, logo depois foi repassado para responsabilidade do Departamento de Esgotos Pluviais (DEP) nos anos 1990, que por sua vez foi extinto devido a críticas em 2019. No ano de 2015, o lançamento do Plano Municipal de Saneamento Básico informou sobre a insuficiência hidráulica e mal funcionamento das bombas de água, mesmo com tal informação o governo não financiou uma manutenção da infraestrutura, o que resultou em um impacto muito maior das chuvas sobre a cidade de Porto Alegre em 2023 e 2024. Segundo Arilson Wünsch, no portal de notícias Sul21, o sistema anti cheias é de responsabilidade do Departamento Municipal de Águas e Esgotos (Dmae), e corre risco de ser privatizado e se tornar vulnerável à precarização e priorização de interesses privados que podem ir de encontro aos interesses da população (Wünsch, 2024).


A participação e interesse da empresa A&M no processo de privatização do principal órgão de saneamento do estado do Rio Grande do Sul, Corsan, é duvidosa, levando em conta o preço desvalorizado pelo qual a companhia foi vendida e a consultoria dupla  da A&M entre as partes vendedora e compradora, indo contra as boas práticas de mercado. Após a compra da Corsan, a população vítima da catástrofe relatou cortes de água e contas em valores altíssimos ao voltarem a suas moradias que haviam sido atingidas pelas inundações, mesmo quando a companhia teria delimitado isenções de contas para as vítimas do desastre (G1-RS, 2024).


Além dos  antecedentes que contribuíram para um enfraquecimento dos sistemas anti enchentes pelo estado, a notícia de contratação da empresa contribui para o aumento da desconfiança local em relação a possíveis planos de sucateamento público, devido ao histórico de envolvimento em processos de privatização de serviços públicos. Como explicado por Naomi Klein, a cidade de Nova Orleans passou por um processo de privatização intenso do sistema educacional envolvendo diversos atores privados. No caso de Porto Alegre, segundo dados apresentados na página online da consultoria, aproximadamente 7 mil profissionais da educação teriam sido aconselhados a procurarem outros empregos, ou seja, milhares de pessoas se tornaram desempregadas a partir daquele momento (Gehm, 2024)


Táticas como as citadas anteriormente estão dentro do escopo do que seria a doutrina de choque, onde atores privados veem situações de extrema vulnerabilidade, principalmente as crises climáticas que têm impacto socioespacial, como oportunidade de investir no setor imobiliário atuando em dois lados de uma só negociação, com a justificativa de estarem reconstruindo o que foi perdido. De modo geral, a ação do setor privado se desdobra de diversas formas e se utiliza de momentos oportunos e frágeis para o alcance de seus interesses. O caso de Porto Alegre em especial se torna exemplar a uma análise dos impactos da inserção do mercado privado em assuntos de esfera pública, que  devem ser direcionados à população em geral e padronizar a oferta de serviços de forma igualitária. Nesse sentido, é essencial que haja esforços legais que proíbam maus hábitos em negociações comerciais e que a conduta de tais empresas seja investigada de forma a evitar a precarização de serviços básicos que devem ser  de responsabilidade do Estado, esta última estando a cargo de cumprir os serviços básicos ao cidadão e não praticando o sucateamento proposital.


Referências Bibliográficas:


ARAUJO, Luiz Antonio. Porto Alegre enfrenta cheia inédita e teme próximos dias: 'Estamos agradecidos por estarmos vivos'. BBC News Brasil, 05 de maio de 2024. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c72pvj85zddo. Acesso em 04 de novembro de 2024


ARAUJO, Luiz Antonio. Reconstrução de Porto Alegre: as críticas a megaconsultoria contratada pela Prefeitura. BBC News Brasil, 29 de maio de 2024. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn00wykl901o. Acesso em 04 de novembro de 2024


DEFESA CIVIL RS. Defesa Civil atualiza balanço das enchentes no RS – 08/7. Disponível em: https://www.defesacivil.rs.gov.br/defesa-civil-atualiza-balanco-das-enchentes-no-rs-08-7. Acesso em 21 de outubro de 2024.


GEHM, Bettina. Contratada por Melo, Alvarez & Marsal atuou na privatização da Corsan. Sul21, 16 de maio de 2024. Disponível em: https://sul21.com.br/noticias/politica/2024/05/contratada-por-melo-alvarez-marsal-atuou-na-privatizacao-da-corsan/. Acesso em 17 de novembro de 2024.


KLEIN, Naomi. Naomi Klein: how power profits from disaster. The Guardian, 06 de julho de 2017. Disponível em: https://www.theguardian.com/us-news/2017/jul/06/naomi-klein-how-power-profits-from-disaster. Acesso em 04 de novembro de 2024.


LAMAS, João Pedro; SILVA, Mary. Conta de água de R$ 1 mil: moradores de Canoas atingidos por enchente recebem cobrança após voltar para casa. G1 Rio Grande do Sul, 16 de julho de 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2024/07/16/conta-de-agua-de-r-1-mil-moradores-de-canoas-atingidos-por-enchente-recebem-cobranca-apos-voltar-para-casa.ghtml. Acesso em 18 de novembro de 2024.


MENGUE, Priscila. Porto Alegre tem sistema colapsado e precisa de bombas emprestadas para drenar enchente. Estadão, 21 de maio de 2024. Disponível em: https://www.estadao.com.br/brasil/porto-alegre-com-sistema-colapsado-bombas-emprestadas-ajudam-a-drenar-enchente/?_gl=1*6ijlps*_gcl_au*MjA1NjcwNTk1OC4xNzMxOTU5NjAy*_ga*ODI3MjU0NDA1LjE3MzE5NTk2MDI.*_ga_H1D7PSZ1DW*MTczMTk1OTYwMS4xLjEuMTczMTk1OTY3Ni41Mi4wLjkwMzk0NzU4OQ. Acesso em 18 de novembro de 2024.


MONCAU, Gabriela. Alvarez & Marsal, McKinsey e EY: 'capitalismo de desastre' toma a frente na reconstrução do RS, Brasil de Fato, 31 de maio de 2024. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2024/05/31/alvarez-marsal-mckinsey-e-ey-capitalismo-de-desastre-toma-a-frente-na-reconstrucao-do-rs. Acesso em 02 de dezembro de 2024.


WÜNSCH, Arilson. Reconstrução pós-enchente: Alvarez & Marsal e um “favor” que pode sair caro (por Arilson Wünsch). Sul21, 17 de maio de 2024. Disponível em: https://sul21.com.br/opiniao/2024/05/reconstrucao-pos-enchente-alvarez-marsal-e-um-favor-que-pode-sair-caro-por-arilson-wunsch/. Acesso em 17 de novembro de 2024.


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