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A narrativa das empregadas domésticas brasileiras como ação transnacional na formulação de normas in

Updated: Apr 2, 2021

Por Giovanna Martins

O Brasil lidera o ranking mundial de empregadas domésticas por habitante[1], no entanto, essa realidade não impediu com que essa classe trabalhadora fosse historicamente marginalizada e excluída, sofrendo na pele a intersecção entre os preconceitos de raça[2], de gênero[3] e de classe. Isto posto, pretendo demonstrar aqui que, apesar da união de forças no sentido de sistematicamente privar as domésticas do acesso a seus direitos trabalhistas, essa classe de mulheres conseguiu se organizar enquanto movimento social, enquanto sindicato e enquanto federação sindical, projetando-se desta maneira no âmbito internacional. Nesse sentido, destaco a atuação da FENATRAD (Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas) e sua ação transnacional enquanto narrativa não-hegemônica na formulação de normas internacionais.

Uma das mais pungentes características do atual Sistema Internacional é o esforço dos Estados no sentido de construção de espaços multilaterais e de promoção da chamada governança global, e nesse sentido, destaca-se a importância das normas internacionais, definidas como “a standard of appropriate behavior for actors with a given identity” (FINNEMORE e SIKKINK, 1998, p. 891). Tendo isso em vista, importantes espaços de formulação e de aplicação dessas normas são as Organizações Internacionais, como a Organização Internacional do Trabalho (OIT) que aqui será abordada. Essas normas exercem certa influência no arranjo das políticas externas e internas, como citado pelas autoras “domestic norms, however, are deeply entwined with the workings of international norms. Many international norms began as domestic norms and become international through the efforts of entrepreneurs of various kinds” (FINNEMORE e SIKKINK, 1998, p. 893) e agentes importantes para sua criação e disseminação são os movimentos sociais transnacionais.

O “ciclo de vida” de uma norma internacional tem três estágios[4]: o surgimento doméstico da norma e sua subsequente aceitação; seu efeito em cascata, caracterizado pela adoção espontânea dos países às normas, independentemente de pressões internas, como uma demonstração de sua eficiência em âmbito regional (por exemplo); e finalmente sua internacionalização. O que alguns autores questionam é a verdadeira eficiência de tais normas, quem são os seus agentes potencializadores e de onde elas advêm, levando em consideração que o surgimento da maioria dessas normas e dessas organizações propagadoras é o Norte Global, portanto abrindo margem para o questionamento da universalidade de fato. No sentido oposto à essas críticas mas ressaltando que esse é um processo de exceção, há o caso da FENATRAD, que surgiu em 1936 como movimento social de bairro, em 1985 criou o Conselho Nacional das empregadas domésticas, em 1988 fundou a Confederação de Empregadas Domésticas da América Latina e do Caribe (CONLACTRAHO), contando com classes da Argentina, da Bolívia, da Colômbia, do Chile, da Costa Rica e da Guatemala e em 1997 organizou a Federação, que hoje atua no Brasil inteiro e é a plataforma de materialização da união entre 22 sindicatos e uma associação da classe.

A FENATRAD deu voz em âmbito doméstico e internacional às empregadas domésticas, auxiliando no reconhecimento da classe e na conquista de garantias legais através do movimento sindical organizado e transnacional. Um marco dessas conquistas foi o reconhecimento do trabalho doméstico como função com a lei de número 5859[5] em 1972, mas a luta dessa organização de classe não parou por aí. Já em uma luta compartilhada, essas mulheres perceberam que as demandas nacionais em muito se articulavam com as internacionais, e por isso conforme os anos se passaram e a Federação se fortaleceu, elas conseguiram firmar parceiras com Organizações Internacionais.

Em aparição histórica, a FENATRAD compareceu nas Conferências Internacionais do Trabalho da OIT em 2010 e 2011 em Genebra, colocando, de maneira inédita, os direitos trabalhistas como direitos humanos, e mostrando que as reivindicações dessa classe não poderiam mais ser silenciadas. Apesar do empecilho do idioma, a Federação foi tida como um exemplo para muitos países, e teve participação fundamental na formulação da Convenção 189, Convenção sobre o Trabalho Decente para as Trabalhadoras e os Trabalhadores Domésticos (2011)[6].

Apesar da conquista, a Convenção 189 não era suficiente, era preciso respaldo da classe também em âmbito nacional. Por isso a necessidade de criação de mecanismos legais específicos na Constituição Brasileira às empregadas domésticas, que tiveram seus direitos trabalhistas garantidos finalmente nesse contexto, com a lei de número 150 de 2015. Esse marco legal, que ficou conhecido como a PEC das domésticas, foi construído a partir da participação da FENATRAD em diversas audiências, e mesmo após a sua aprovação, a classe comprometeu-se com a vigilância da mesma, como maneira de fiscalizar se o que está na lei está se fazendo cumprir na prática. A Federação, portanto, teve um papel crucial na organização dessa luta com vias para a conquista desses direitos, inclusive para a posterior ratificação da Convenção no ano de 2018. A breve reconstrução da luta por direitos dessas mulheres é um caso de protagonismo de agentes historicamente subalternos, que nesse caso conseguiram contar sua própria história e modificar a das demais pessoas.

A Convenção 189 foi ratificada por 25 países, a PEC das domésticas vigora até os dias atuais, e em 2019 a OIT, em parceria com a FENATRAD e com o Solidarity Center[7], promoveu a Primeira Oficina de Formação de Formadoras, sob o título “Fortalecendo os Sindicatos de Trabalhadoras Domésticas”, com o intuito de capacitar empregadas domésticas à organização e formação de sindicatos, através do compartilhamento de “conhecimentos para a conscientização, mobilização, empoderamento e sindicalização desta categoria profissional, que apresenta cerca de 5 milhões de trabalhadoras na informalidade”[8].

Tendo o que foi apresentado em vista, o caso das empregadas domésticas é notável no sentido de colocar atores em posição de desprestígio histórico tanto nacional quanto internacional, por serem mulheres, por serem maioria negra e de baixa renda, e por serem do Sul Global como formuladoras de políticas públicas e de normas internacionais. O diálogo entre os planos doméstico e internacional é nítido, a presença da classe nas Conferências da OIT influenciou na criação da PEC das domésticas, que por conseguinte influenciou na criação de um regime de proteção à classe, abrangido também pela ratificação brasileira da Convenção em 2018. Mas não é um diálogo linear, há avanços e retrocessos a todo o momento, e a classe precisa sempre mostrar-se atenta. E tampouco é um diálogo imposto de cima pra baixo ou de mera “tradução”[9], as empregadas domésticas que escreveram sua própria história e que se fizeram presentes, via movimentos sociais e associações sindicais, e muito antes do que o próprio Estado brasileiro.

Esse quadro de transnationalization from below mostra a importância dos movimentos sociais e da interlocução entre o nacional e o internacional, assinalando que vulnerabilidades transnacionais podem se transformar em rupturas e transformações no mesmo espaço, e que atores subalternos podem se articular e se impor coletivamente, modificando estruturas locais e globais de repressão e formando uma rede de proteção e de garantias no que tange o cumprimento dos direitos humanos.


Referências bibliográficas:

FINNEMORE, Martha and SIKKINK, Kathryn. International Norm Dynamics and Political Change. International Organization, 1998.

NORCIA, Raffaela. Possibilidades de Influenciar a Formulação das Normas Locais e Internacionais – Caso das Domésticas Brasileiras. Mestrado Profissional em Governança Global e Formulação de Políticas Internacionais PUC-SP, 2019.

REIS, Rossana R. Os Direitos Humanos e a Política Internacional. Revista de Sociologia e Política, 2006.

ZWINGEL, Susanne. How do Norms Travel? Theorizing International Women’s Rights in Transnational Perspective. International Studies Quarterly. 2011.

Notícia, Solidarity Center. Disponível em: https://www.solidaritycenter.org/brazil-ratifies-domestic-worker-convention/ . Último acesso em: 05 de junho de 2020.

Notícia, Escritório da Organização Internacional do Trabalho no Brasil. Disponível em https://www.ilo.org/brasilia/noticias/WCMS_616754/lang–pt/index.htm . Último acesso em: 05 de junho de 2020.

Informações sobre a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas. Disponível em https://fenatrad.org.br/ . Último acesso em: 05 de junho de 2020.

 

[1] Dados do documento “Domestic workers across the world: Global and regional statistics and the extent of legal protection”, de 2013, da OIT

[2] Dados do IPEA segundo os quais, em 2015, das 6.275.592 empregas domésticas no Brasil, 4.059.869 eram negras, quase o dobro das brancas (2.215.723). Dados disponíveis em 7.1ª1 https://www.ipea.gov.br/retrato/indicadores_trabalho_domestico_remunerado.html

[3] “Em 2016, o Brasil tinha 6,158 milhões de trabalhadoras(es) domésticas(os), dos quais 92% eram mulheres”, dados do PNAD disponíveis em https://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-domestico/lang–pt/index.htm

[4] FINNEMORE, Martha, and SIKKINK, Kathryn. International Norm Dynamics and Political Change. International Organization, 1998.

[5] LEI Nº 5.859, DE 11 DE DEZEMBRO DE 1972, Disponível em http://www.planalto.gov.br/Ccivil_03/leis/L5859.htm

[7] O Solidarity Center é a maior Organização Internacional de direito dos trabalhadores e das trabalhadoras. É sediada nos Estados Unidos, mas tem ações de combate às diversas explorações e garantias de direitos no mundo inteiro

[8] Trecho retirado da notícia “OIT promove formação para dirigentes de sindicatos de trabalhadoras domésticas” de 06/11/2019 disponível em https://nacoesunidas.org/oit-promove-formacao-para-dirigentes-de-sindicatos-de-trabalhadoras-domesticas/

[9] MERRY, Sally. Human Rights and Gender Violence: Translating International Law into Local Justice. University of Chicago Press, 2006

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