A Organização Mundial da Saúde (OMS), no dia 30 de janeiro de 2020, decidiu estabelecer o surto da Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, como uma crise de saúde pública de caráter global. A declaração estabelecendo tal emergência sanitária como uma pandemia veio à tona no dia 11 de março do mesmo ano, explicitando a gravidade de sua proliferação geográfica, bem como seu poder de contágio.
Imprescindível ressaltar, também, que até o início de janeiro de 2021, de acordo com os dados oficiais da mesma instituição responsável pela saúde global, a nova doença já infectou cerca de 89 milhões de indivíduos por todo o planeta, tendo condenado ao óbito mais de 1 milhão e 900 mil pessoas a despeito de suas nacionalidades ou de seus alinhamentos políticos (https://covid19.who.int/).
A gravidade da crise e suas consequências sociais e econômicas deixam pouca margem de manobra para além do investimento científico e da coordenação de esforços no sentido do desenvolvimento de uma vacina que combata o vírus ou do descobrimento de eventuais medicamentos que possam ser destinados a tratar a doença e reduzir exponencialmente o número de mortes.
Esse cenário alarmante ilustra a urgência em que a comunidade global se encontra e a necessidade de uma ação coordenada para uma resposta efetiva e eficiente para a crise sanitária que assola o planeta. Todavia, percebe-se que a coordenação internacional sofreu uma série de reveses ao longo dos últimos anos, em razão da alteração contumaz das estratégias diplomáticas historicamente construídas por diversos atores globais de relevância como, por exemplo, o Brasil. A paralização da Organização Mundial do Comércio e declarações públicas por parte de Chefes de Estado minando a credibilidade das diretrizes estabelecidas pela Organização Mundial da Saúde são apenas alguns exemplos de desafios que o multilateralismo vem enfrentando na contemporaneidade. Dessa forma, cristalina a percepção de que a situação pandêmica serviu como mais um ingrediente dessa receita de insegurança e incerteza sobre os rumos a serem tomados pela comunidade internacional.
Acontece que, ainda que pareça banal a conclusão no sentido da integral dependência de intensa pesquisa e da inevitável inovação científica no combate a esse novo vírus, a resposta dos países não tem se mostrado integrada o suficiente para viabilizar a redução da transmissibilidade pelo planeta. No mais, somando-se a nada fácil superação do desafio posto à coordenação internacional outro problema surge ao horizonte, na medida em que pouco há que se questionar sobre a restrição seletiva do acesso a estes itens resultantes da excelência científica. É fato que, quando finalmente têm sua eficácia comprovada, dificilmente esses medicamentos tendem a chegar ao mercado a preços razoáveis ou com uma capacidade produtiva capaz de suprir a demanda mundial, fadando grande parte da população do planeta localizada para além do eixo dos países desenvolvidos à impossibilidade de acesso a tais fármacos tão revolucionários quanto vitais.
Nesse sentido, a urgência necessária e o acesso irrestrito a novos medicamentos costuma defrontar-se, dentre outros obstáculos, com as barreiras estabelecidas pela legislação que protege os direitos relativos à propriedade intelectual. Inegavelmente este tende a ser um problema igualmente verificável no cenário atual, já que inúmeras patentes destinadas a medicamentos, vacinas ou equipamentos que podem auxiliar no combate e no desenvolvimento de uma solução para a pandemia já foram identificadas ao redor do mundo. A título de exemplo, vale mencionar que apenas a empresa 3M, responsável pela fabricação de diversos itens destinados à proteção individual das pessoas e, consequentemente, absolutamente vitais no cenário pandêmico, detém mais de quatrocentas patentes para proteção respiratória. No âmbito da busca pela vacina, o cenário é semelhante, assim como se percebe a partir do imunizante da Pfizer, gigante farmacêutica norte-americana, emblemática na defesa da propriedade intelectual, e que vem se destacando pela crescente utilização de seu imunizante no combate à Covid-19.
Dado o cenário descrito, não se pode ignorar o papel de centralidade que os direitos de propriedade intelectual desempenham no jogo de poder e de influências no ordenamento internacional. Por um lado, alega-se a necessidade da proteção para que empresas direcionem recursos técnicos e financeiros ao desenvolvimento de novas soluções. Por outro, não pode ser desconsiderado que vultosos recursos públicos são alocados para apoio à pesquisa na área farmacêutica e de saúde, muito menos que, em um cenário tão grave, tais direitos monopolistas podem obstaculizar a disseminação de tecnologias e limitar a produção e o acesso aos medicamentos e outros produtos essenciais no combate ao vírus. Um exemplo fático decorre da questão de que os direitos patentários impedem que empresas produtoras de genéricos possam fornecer medicamentos em qualquer parte do planeta, restringindo a capacidade produtiva e o acesso amplo à solução da crise pelas populações mais carentes.
Considerando o caráter de emergência sanitária da pandemia atual, o papel desempenhado pelos países no cenário internacional é crucial para garantir o acesso da maior parte possível da população mundial aos medicamentos mais eficazes ao combate da doença no menor espaço exequível de tempo. Tal fato já vem colocando em choque os diferentes posicionamentos acerca da questão. Enquanto alguns defendem que as disputas envolvendo os direitos de propriedade intelectual acabam por minar os esforços desenvolvimentistas para novas tecnologias de auxilio ao combate da doença, outros sustentam a necessidade de garantir às populações mais miseráveis do planeta o igualitário acesso às inovações farmacêuticas desenvolvidas.
Tal divergência entre os países produtores e normalmente exportadores de tecnologia farmacêutica e as nações em desenvolvimento, em grosso modo mais consumidoras dos fármacos do que produtoras, em nada é uma situação inédita. Nesse sentido, a questão já foi amplamente debatida e por fim balizada por acordos internacionais, dentre os quais há que destacar o TRIPS (Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights), sob a tutela da Organização Mundial do Comércio (OMC). Com a vigência deste acordo, muitos países se comprometeram com regras de proteção aos direitos de propriedade intelectual mais rigorosas e com escopo mais amplo do que antes de sua implementação, o que via de regra teve como consequência a maior dificuldade no acesso a bens essenciais por populações menos favorecidas.
Nesse contexto, diante de tal dilema e buscando resguardar certa parcela do interesse público dos cidadãos dos países em desenvolvimento mais diretamente afetados pelas restrições impostas ao acesso aos bens protegidos por direito de propriedade intelectual, ainda mais no que se refere a casos envolvendo questões de saúde pública, e buscando viabilizar que políticas públicas importantes para o desenvolvimento socioeconômico e tecnológico fossem compatíveis com o acordo, foi necessário prever algumas flexibilizações e determinadas exceções às normas internacionalmente acordadas. Dessa forma, os países em desenvolvimento tiveram uma participação ativa, sobretudo Brasil e Índia, que acabaram por assumir um papel de liderança global na defesa de tal flexibilização em prol do acesso de países pobres a medicamentos essenciais e, consequentemente, à garantia da saúde global.
Nesse sentido, uma das flexibilidades previstas no TRIPS foi a licença compulsória de patentes, que pode ser entendida como uma permissão legal para o licenciamento de uma patente independentemente do consentimento de seu titular, viabilizando que outro tenha a possibilidade de produzir um produto ou reproduzir um processo patenteado. A possibilidade da licença compulsória está prevista no art. 8° do TRIPS e especificada em seus artigos 31 e 31“bis”, que determinam os requisitos para que um país membro conceda tal licença. A partir de tais dispositivos normativos percebe-se que em suas disposições gerais e em seus princípios básicos, prescreve-se o seguinte: “1. Os Membros, ao formular ou emendar suas leis e regulamentos, podem adotar medidas necessárias para proteger a saúde e nutrição públicas e para promover o interesse público em setores de importância vital para seu desenvolvimento sócio-econômico e tecnológico, desde que estas medidas sejam compatíveis com o disposto neste Acordo. 2. Desde que compatíveis com o disposto neste Acordo, poderão ser necessárias medidas apropriadas para evitar o abuso dos direitos de propriedade intelectual por seus titulares ou para evitar o recurso a práticas que limitem de maneira injustificável o comércio ou que afetem adversamente a transferência internacional de tecnologia”.
As negociações para tais mudanças foram iniciadas em 2001, na Rodada Doha e ganharam mais força com os avanços do HIV, no início dos anos 2000, situação em que o papel brasileiro delineava seu posicionamento em prol da licença compulsória para casos de grande repercussão sanitária nacional, como era o caso, se tornando um exemplo emblemático da atuação do país no cenário internacional. Todavia, a despeito desse histórico louvável e que alçou o Brasil como um dos expoentes do mundo em desenvolvimento na defesa de uma saúde global mais democrática, decisões recentes do Governo Federal brasileiro, bem como a adoção de uma estratégia diplomática mais alinhada com os interesses dos países mais desenvolvidos do planeta colocam em xeque a permanência do Brasil em tal posição de liderança.
Assim como identifica Marcelo Fernandes de Oliveira em seu artigo “Alianças e coalizões internacionais do governo Lula: o Ibas e o G-20”, um movimento de coligação do Brasil com a Índia e a África do Sul foi se costurando desde a administração do Presidente Fernando Henrique Cardoso, a partir dos esforços conjuntos desses três países na busca pela quebra das patentes das empresas transnacionais farmacêuticas que possuíam o monopólio do conhecimento para a produção de medicamentos retrovirais destinados ao combate da epidemia de AIDS. É consenso entre os analistas de política internacional a importância desse movimento de pressão exercida por três países considerados periféricos, e o sucesso obtido na forma do reconhecimento do acesso a tais medicamentos de maneira menos custosa, reconhecendo tal acesso como uma necessidade básica e um bem público. Vale ressaltar ainda que, conforme também identifica Oliveira, tal associação de países se aprofundou durante os Governos petistas de Lula e Dilma, tendo, inclusive, se institucionalizado na forma do IBAS (Fórum de Diálogo entre Índia, Brasil e África do Sul) e, posteriormente, dos BRICS.
Dessa forma, é possível perceber que nas últimas décadas, desde a derrocada da presidência de Collor, o Brasil vinha costurando uma estratégia diplomática mais alinhada à antiga ideia do paradigma da autonomia e, consequentemente, voltada à busca da diversificação de parcerias e alianças, sem, vale ressaltar, romper de forma brusca ou confrontadora com os Estados Unidos e as outras potências tradicionais. Parte dessa estratégia focada no que se passou a conhecer por Sul-Sul pode ser observada na organização do G20 comercial na OMC e na já mencionada articulação do IBAS, unindo as aspirações do Palácio do Planalto com ideais históricos do Itamaraty.
Porém, nesse momento de extrema conturbação mundial em decorrência da maior crise sanitária das últimas décadas, o Brasil optou por se afastar de seu posicionamento histórico e de seus habituais parceiros. Em meados de novembro de 2020, Índia e África do Sul decidiram capitanear um projeto na OMC, com o apoio de uma série de outros países em desenvolvimento e de outras instituições de saúde global, propondo a suspensão das patentes dos fármacos, imunizantes e demais produtos destinados ao combate ao Covid-19 até o controle da pandemia.
Tal projeto permitiria a ampliação da capacidade produtiva desses instrumentos de combate ao vírus, bem como a produção de genéricos, democratizando o acesso a eventuais vacinas e medicamentos. Porém, o Brasil decidiu se descolar da ampla maioria dos países em desenvolvimento e reproduzir a defesa dos acordos internacionais de propriedade intelectual, alegando a desnecessidade de tal projeto ante a já existência de flexibilizações e exceções aos direitos patentários, como já fora previamente mencionado.
Em um momento como o atual, em que uma grande quantidade de vacinas têm se mostrado viáveis na garantia da imunidade de rebanho, absolutamente essencial no controle da doença, se mostra no mínimo curioso o posicionamento do Itamaraty, na contramão de uma estratégia previamente adotada e inegavelmente bem sucedida. A falta de interesse do Brasil em aprofundar ainda mais as raízes de suas parcerias na área da saúde global pode ser vista como uma manobra arriscada e cujos benefícios são uma incógnita e fatalmente serão objeto de estudos futuros.
Bibliografia:
ZUCOLOTO, Graziela; MIRANDA, Pedro e PORTO Patricia. “A propriedade industrial pode limitar o combate à pandemia?”. Diretoria de Estudos e políticas Setoriais de Inovação e Infraestrutura. N°61. Nota técnica IPEA. 2020. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/200507_nt_diset_n_61.pdf >. Acesso em 10 de janeiro de 2021.
WATSON, Alexandra G. “International Intellectual Property Rights: do TRIPS’ Flexibilities Permit Sufficient Access to Affordable HIV/AIDS Medicines in Developing Countries?”. Boston College International and Comparative Law Review. Volume 32. Article 8. 2009.
CASTRO, Elza Moreira Marcelino de. “O acordo TRIPS e a saúde pública. Implicações e perspectivas”. Fundação Alexandre de Gusmão. Brasília. 2018.
OLIVEIRA, M. F. “Alianças e coalizões internacionais do governo Lula: o IBAS e o G-20”. Revista Brasileira de Política Internacional, 48(2), 2005.
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