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A dificuldade em existir: uma análise de políticas de controle voltadas às populações romani na Uniã

Por: Maria Thereza Dumas Neto

Introdução

A PESTE

Vamos! Todos vós: apressai-vos. As coisas estão andando muito devagar nesta cidade. O povo daqui não é trabalhador. É visível que prefere o ócio. […] Apressemo-nos! Acabai de erguer minha torre: a vigilância não está instalada. […] Colocai nossas estrelas sobre as casas das quais pretendo ocupar-me. E vós, cara amiga, começai a redigir nossas listas e providenciai nossos certificados de existência.

(A Peste sai, pelo lado oposto)

(Camus, 1948, pp. 66)

Em Estado de Sítio, Albert Camus conta a história de Cádiz, uma cidade comandada pela Peste. As primeiras ações de seu novo governo são de estabelecer uma burocracia de controle: despejar os indesejáveis de suas casas, e mandá-los para a Secretária, incumbida da papelada necessária para um homem virar real, o certificado de existência. A peça de Camus foi escrita em 1948, sendo uma grande crítica à burocratização dos Estados, que era utilizada para exterminar a população indesejável: “A partir de hoje, ireis aprender a morrer na ordem” diz a Peste (Camus, 1948, pp. 61).

Apesar da data da peça, ainda hoje vê-se exemplos dessa técnica de dominação, sendo usada principalmente contra minorias, como os Roma, uma minoria étnica espalhada pela Europa. A partir dessa alegoria, este artigo pretende demonstrar, por um lado, como alguns Estados se utilizam de “certificados de existência” diferenciados para segregar e desumanizar a população romani, e, por outro lado, trazer exemplos de outros Estados que criam espaços onde os romani não são permitidos tais “certificados de existência”, efetivamente retirando seus direitos e seu próprio ser jurídico.

Para realizar essa análise, o artigo irá se basear nos conceitos de “domopolítica”, do autor William Walters (2004) e de “homo sacer” do autor Giorgio Agamben (1998). Além disso, dois casos serão trazidos como exemplo: a política de identificação dos romani realizada na Romênia e a construção de campos de exclusão romani na Itália em 2008.

Nomadismo romani vs. livre circulação na União Europeia

Nós somos ciganos… Um povo livre… Temos nossas leis, as leis ciganas. Nossa pátria é onde moramos e onde nosso coração se alegra – para nós, a pátria está em todo lugar. Em todo lugar debaixo do céu. (Aleksiévitch, 2013, pp. 265)

Os povos romani são um grupo étnico-religioso, também chamados vulgarmente de ciganos, cuja característica mais conhecida é seu nomadismo. Eles não se definem com nenhuma nacionalidade e sua movimentação atravessa as fronteiras dos países Europeus. Por não se enquadrarem dentro dos moldes de soberania do Estado Moderno, ao longo da história os povos romani foram transformados em alvos de violência estatal e da população.

Considerando isso, houve a criação de diversas políticas públicas referente aos romani, buscando sempre incluí-los no modo de vida moderno, e se enquadrar nas expectativas de mobilidade da União Europeia. É interessante notar o paradoxo acerca do impedimento do nomadismo romani em um bloco de países formados ao redor do princípio da livre circulação de pessoas. Isso ocorre porque a movimentação de pessoas na União Europeia se enquadra dentro da modernidade, e o nomadismo romani é considerado pré-moderno, até chamado de medieval por alguns líderes de Estado:

For instance, a member of former French President Sarkozy’s ruling party, Union pour un Mouvement Populaire (UMP), stated that the key issue of what he called the ‘European Roma problem’ is the way in which Roma interpret and practice the right to travel freely in the EU. He said that their ‘excessive mobility’ and its ‘related medieval lifestyle’ cause serious security problems and, he suggested, should lead us to reconsider the EU’s free movement directive. (van Baar 2011 em van Baar 2015)

Assim, por mais irônico que seja, os países da União Europeia traçam políticas que visam fixar os romani, fazê-los se adaptar às noções modernas de nacionalidade. Nesse  artigo, serão dados dois exemplos de tais políticas: a criação de documentos de identidade temporária para romani na Romênia, os quais classificam a mobilidade romani como  irregular (Lamberto, 2015) e a construção de campos estatais para a alocação dos romani na Itália, o que os constrange fisicamente e permite a vigilância constante e obrigatória dessas comunidades (Marinaro, 2009).

Certificado de existência diferenciado: a documentação temporária dos romani da Romênia

O PESCADOR (que corresponde ao corifeu)

Para quê um certificado de existência?

A SECRETÁRIA

Para quê? Como iríeis vos arranjar, para viver, sem um certificado de existência?

O PESCADOR

Até agora, vivemos muito bem sem isso.

A SECRETÁRIA

Porque não éreis governados, enquanto agora o sois. (Camus, 1948, pp. 66)

Uma grande questão acerca da vida dos romani na União Europeia é a  impossibilidade de alguns de terem documentos e usufruírem de sistemas públicos considerando sua mobilidade. Assim, uma tentativa de solução foi a buscada pelo governo romeno, de criar documentos especiais, temporários para tal população. Teoricamente, o objetivo dessa política seria garantir que os romani fossem juridicamente considerado cidadãos, entretanto, pode-se apontar essa documentação especial como uma forma de controle de uma população considerada ilegítima, ainda mais considerando as consequências de segregação e acumulação de dados desse grupo de indivíduos (Lamberto, 2015).

Essa necessidade de documentação especial de indivíduos móveis se dá precisamente por considerá-los “illegible”, um grupo de cidadãos passível de não serem controlados, não ideais e, por isso, considerados hostis (Lamberto, 2015, pp. 2). Assim, os romani, culturalmente não se assimilando com nenhuma nacionalidade e espacialmente não se fixando em nenhum Estado, são taxados como perigosos à estrutura social, justificando, para o governo Romeno, a criação de técnicas para gerir esse grupo, como as identidades temporárias.

As identidades são um dentre vários programas estatais classificados como programas de “inclusão do avesso” (aversive inclusion):

Such practices are designed by the state as attractive enticements to illegible populations, like Roma, by promising them similar legal rights guaranteed to legitimate citizens, such as the right to maintain a job or seek recourse to welfare benefits but function as a strategy for population sorting. (Lamberto, 2015, pp.4-5)

Assim, as consequências práticas de identidades temporárias têm sido uma segregação ainda maior dos romani: ter uma identidade temporária deixa automaticamente claro que esse cidadão não o é realmente, coloca os romani em uma categoria permanente de suspeita (Lamberto, 2015), corroborando noções ofensivas históricas e permitindo que o Estado tenha controle sobre esse grupo, tendo uma base de dados daqueles com a identidade temporária, ou seja, daqueles que não são legítimos.

Esses cartões de identidade também não davam os mesmos direitos do que identidades permanentes, impedindo que o titular temporário viaje sem um passaporte dentro da União Europeia (Lamberto, 2015, pp. 5-6). Considerando que os romani são um grupo historicamente móveis, e que a União Europeia é criada sobre a premissa de livre circulação, o que parece um paradoxo é, na verdade, a separação entre uma mobilidade legítima e uma ilegítima, os romani, por não serem considerados modernos, precisam ser geridos ou transformados.

Esses métodos de controle se enquadram com o que o autor William Walters chamou de “domopolítica” – “a will to domesticate the forces which threaten the santity of home” (Walters, 2004, pp. 242). Assim, sendo os romani um grupo que não compartilha das noções modernas (legitimadas) da União Europeia acerca de mobilidade, eles se tornam uma ameaça à esses valores, e, portanto, a vigilância deles é justificada.

This shift has gone together with the gradual overshadowing  of territorial and disciplinary forms and techniques of control by population-based mechanisms of control that monitor the flows of information, good, services and peoples, and which create more surveillance for some, allegedly ‘risky’groups than for those considered ‘at risk’ (Bigo, 2006 em van Baar, 2015, pp. 3)

Como forma de observação para garantir que o grupo não rompa com os preceitos europeus, então, é criada a identidade temporária, o certificado de existência dos romani. Um certificado que os constrange (socialmente, por causar preconceitos, politicamente, por não lhes garantir direitos, e territorialmente, por impedi-los de se movimentar) e que, antes do Estado moderno e das técnicas de gestão neoliberais, nunca foram necessários para que os romani se movimentassem através do que hoje é a Europa. Agora que os romani precisam ser governados, porém, o certificado de existência se torna necessário, já disse a Secretária de Camus.

Viver sem um certificado de existência: os campos de assentamento obrigatório romani na Itália

O PESCADOR

Venho do primeiro andar e lá me responderam que deveria vir primeiro aqui, para obter o certificado de existência, sem o qual não me darão certificado de saúde.

A SECRETÁRIA

É clássico!

[…]

O PESCADOR

Poderei, pelo menos, ver esses benditos certificados de existência?

A SECRETÁRIA

Em princípio, não – uma vez que precisareis, de início, de um certificado de saúde, para terdes um certificado de existência. Aparentemente, não há saída. (Camus, 1948, pp. 76)

Na parte anterior do texto, demonstrou-se como mecanismos diferenciados de existência são criados para segregar e vigiar as populações romani, dando como exemplo as identidades temporárias na Romênia, e como esses instrumentos são validados por meio das preocupações com as identidades legitimadas, utilizando o conceito de domopolítica para tanto. Agora, irá-se tratar de uma outra forma de exclusão de grupos indesejáveis, a qual garante a ordem social ao confinar os corpos dos indivíduos desses grupos, no caso em campos de assentamento, e será usado o conceito de homo sacer, de Giorgio Agamben, para tanto.

Para explicar o homo sacer, Agamben alude à figura do criminoso em Roma Antiga, cuja punição era banimento da sociedade, resultando na perda de seus direitos políticos e existência jurídica. A existência desse indivíduo é considerada “bare life”, pois qualquer violência contra esse corpo não teria punição, considerando que ele já não existe mais politicamente. Assim, o homo sacer vive em constantemente em fuga, pois não existe garantia para sua proteção (Marinaro, 2009). É importante ressaltar que a existência do homo sacer se dá em oposição a existência daquele que não o é: para existir alguém com uma inexistência política/jurídica, o resto da população deve existir nesse molde, isso será importante no caso que será apresentado.

Ao longo de sua história, os governos da Itália têm sistematicamente conduzido políticas de segregação e expulsão dos Roma, sendo que, em 1984, houve a primeira defesa legal para a criação de campos de assentamento obrigatório dos romani:

The historical racialisation of Italy’s Roma as nomadic deviants thus combined with a drive to segregate and criminalise this group of urban poor, generating a new form of biopolitcs which merged the Roma’s legal and biological lives: the introduction of regional laws from 1984 enabling the creation of special camps to accommodate the Roma’s supposedly nomadic predisposition. This development was crucial for setting the groundwork for today’s treatment of Roma. (Marinaro, 2009, pp. 273)

Apesar dos campos estatais começarem a ser criados em 1984, inicialmente eles não consistiam em um estado de exceção, por não alterar a lei tradicional do país referente aos corpos que viviam nos campos (Marinaro, 2009). Mesmo assim, eles foram o primeiro uso de tecnologias de espacialização de contenção dos corpos romani (Sigona, 2005). Na política contemporânea, entretanto, os campos de assentamento já tem mais centralidade na contenção de romani.

Em 1993, com a chegada de muitos romani fugindo da guerra na Bósnia, e sua instalação em campos informais nas periferias de Roma e sofrerem violências e vandalismo da população italiana que morava perto dessas instalações, o então prefeito, Francesco Rutelli, realizou o primeiro censo étnico dos Roma, e os separou em dois grupos: aqueles sem um histórico criminal – e, então, qualificados para viver em campos – e aqueles com – que sofreram expulsões em massa da capital (Marinaro, 2009, pp. 275). A partir de então, os prefeitos de Roma progressivamente aumentaram a retórica anti-romani, os qualificando como criminosos e perigosos, como forma de angariar votos, e, como consequência, os romani foram sofrendo cada vez mais perseguição da população e da polícia, e separados em grupos de desejáveis – os quais eram movidos para campos estatais – e indesejáveis – os quais eram obrigados a viver em condições cada vez mais precárias, sempre fugindo da polícia e suscetível à extrema violência por parte da população (Marinaro, 2009).

Essa separação cria o homo sacer: o romani indesejável que vive fora dos campos estatais, por ser considerado um criminoso, e, então, não tem direito a nenhum tipo de documentação ou existência legal e jurídica. Para eles, mais uma vez nas palavras da Secretária de Camus, aparentemente, não há saída.

Conclusão

A PESTE

(Luz ao centro)

Vós, cara amiga, preparai o balanço das deportações e das concentrações. Ativai a transformação de inocentes em culpados. […]

A SECRETÁRIA

Está sendo feito. Tudo vai bem e parece-me que essa boa gente já me compreendeu.

A PESTE

Tendes uma ternura à flor da pele, cara amiga. Sentis a necessidade de compreensão. […] o essencial é que não compreendam, o essencial é que se executem. Reparai! É uma expressão que tem seu sentido, não achais?

A SECRETÁRIA

Que expressão?

A PESTE

Executar-se. Vamos, vós aí, executai-vos, executai-vos. […] depois, a ideia de que o que se executa colabora na sua própria execução – o que é o objetivo e a consolidação de todo bom governo. (Camus, 1948, pp. 78)

O objetivo deste artigo era demonstrar algumas das atuais técnicas de controle de populações marginalizadas taxadas como indesejáveis, utilizando o caso dos romani que residem na União Europeia como exemplo. Essas são técnicas utilizadas em um novo momento de formas de controle, o qual vai além de proteção fronteiriça e altera a noção de fronteira, ao mesclar segurança interna e externa (Bigo, 2006; van Baar, 2015).

Com essa mudança, o conceito de proteção do Estado e seus cidadãos vai além da proteção ameaças externas, mas realoca fronteiras em qualquer local que haja um comportamento suspeito, como, no caso demonstrado, ao classificar os romani como uma categoria ilegítima de indivíduo (Töpher, 2012; van Baar, 2014 em van Baar, 2015). Assim, “while ‘old curtains’ have disappeared, ‘new screens’ and preemptive measures based on threat perception and construction have entered the scene” (van Baar, 2015, pp. 6). E os romani são um entre muitos grupos a serem alvo dessas técnicas de controle.

Bibliografia

Lamberto, Julien. A tale of the Roma People in Europe in the Context of the Sovereign Nation-State, Drake University Undergraduate Social Science Journal, 2015.

Marinaro, Isabella Clough. Between Surveillance and Exile: Biopolitics and the Roma in Italy. Bulletin of Italian Politics. Vol. 1, No. 2, pp. 265-87. 2009.

Sigona, N., 2005. Locating ‘The Gypsy Problem’. The Roma in Italy: Stereotyping, Labeling and ‘Nomad Camps’. Journal of Ethnic and Migration Studies, 31 (4), 741-756.

van Baar, Huub. Socio-Economic Mobility and Neo-Liberal Governmentality in Post-Socialist Europe: Activation and the Dehumanisation of the Roma. Journal of Ethnic and Migration Studies. Vol. 30, No. 8, pp. 1289-1304. 2012.

van Baar, H. (2015). The Perpetual Mobile Machine of Forced Mobility: Europe’s Roma and the Institutionalization of Rootlessness. In Y. Jansen, R. Celikates, & J. de Bloois (Eds.), The Irregularization of Migration in Contemporary Europe: detention, deportation, drowning (pp. 71-86). London: Rowman & Littlefield International.

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